OFERECE-SE: texto escrito com rigor sobre o fenómeno das transações que não envolvem dinheiro, uma realidade a crescer em Portugal por causa da crise. PROCURA-SE: leitores atentos, interessados nesta matéria. LEIA A REPORTAGEM DA VISÃO E CONHEÇA ALGUNS EXEMPLOS
Luísa Oliveira (Textos) e José Caria (Fotos)
15:32 Segunda feira, 9 de Abr de 2012
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De um lado, um mar de objetos que já não nos servem. Do outro, um mar de gente a precisar deles. Fará sentido estas duas realidades continuarem a navegar em oceanos opostos, numa altura em que todas as armas são poucas contra a crise e que a palavra austeridade entrou no nosso léxico diário? Há muitos portugueses a pensarem que não. Por isso, criam sites ou páginas no Facebook para transacionar todo o tipo de bens e serviços e organizam feiras onde não entram euros. Erguem sistemas monetários alternativos, trocam tempo e tentam mesmo viver quase sem dinheiro. Um fenómeno que emerge numa época de défice de valores, mas que só consegue sobreviver com doses fortes de solidariedade, entreajuda e proximidade. Espreite-se quem já experimentou e gostou.
No final do ano passado, a psicopedagoga Andresa Salgueiro despediu-se.
Aos 35 anos, estava tudo bem com o seu trabalho numa empresa de formação, mas não estava tudo bem com ela. Precisava de mudar de vida, dando mais sentido aos seus dias. “Quero ajudar os outros, ser mais ecológica e responsável no consumo.” Não pediu subsídio de desemprego, apenas que lhe pagassem o que é de lei e, de preferência, em suaves prestações, ao longo de 2012, para cobrir o empréstimo do carro.
A 15 de dezembro, Andresa arrumou de vez a típica vida dos tempos modernos.
Cansou-se de trabalhar para pagar as contas, das muitas idas ao cinema, restaurantes e lojas. Propôs-se a passar um ano apenas com 1 111 euros os tais que servem para liquidar as mensalidades do carro. Nos últimos três meses, as trocas têm-lhe salvo a existência. Aliás, foi também por causa delas que se meteu nisto.
Ainda antes de se despedir, criou a página do Facebook Troco 1 Hora e espantouse com a quantidade de gente que aderiu (mais de 7 mil) e as transações que por lá se fazem. “Têm acontecido muitos milagres, é como uma cadeia mágica.” Desde que iniciou esta experiência já houve quem lhe deixasse comida à porta, lhe desse champô apenas para a conhecer ou lhe oferecesse jantar se ela lavasse a loiça. “Só não tenho controlo sobre o meu dia-a-dia, pois estou muito dependente dos outros. Mas deixo-me ir e as coisas acabam por acontecer.
Claro, se me apetecer comer camarões agora, não posso…” Raquel Ribeiro, 36 anos, professora de Sociologia do Consumo no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, em Lisboa, considera utópico viver-se sem dinheiro.
“[Andresa] consegue levar a sua proposta avante porque é uma exceção.
As pessoas com quem faz trocas têm rendimentos. É muito difícil prescindir de certos bens, como as tecnologias.” De facto, nem Andresa nem o irlandês Mark Boyle (ver caixa) abandonaram o telemóvel ou o computador. Sem eco mediático, as suas experiências deixariam de fazer sentido.
O projeto Believe assim se chama a caminhada de Andresa Salgueiro é um movimento social que recolhe ideias de toda a gente que pretenda mudar Portugal e o mundo. No último domingo de cada mês, há uma feira temática (Believe in change, Believe in love…), onde o dinheiro fica à porta. Os participantes devem levar, além de objetos que já não queiram, algo de comer para partilhar, a sua própria chávena, prato e guardanapo.
Os encontros têm sido realizados com amigos de amigos de amigos… Mas correm bem. À medida que vão chegando, montam as suas “bancas” no chão e fazem aparecer roupa, livros, DVD, pranchas de windsurf, acessórios para cães e gatos… Maria Lattas, 43 anos, é hoje uma entusiasta do Believe, embora até há puco tempo não se imaginasse neste mundo.
“Já ofereci um beliche e recebi uma tábua de passar a ferro. Não importa o valor, mas sim a necessidade que temos de determinado objeto, em certa altura”, esclarece. Na feira, trocou um saco de boxe por um router, e ainda uma blusa de algodão pelo cachecol de Elizabete Agostinho. Esta designer gráfica, de 37 anos, defende cada vez mais o sistema direto, que investe nas pessoas e as desapega da economia de mercado. “É bom centrarmo-nos nas nossas necessidades essenciais.” Elizabete poderia ter ido à última feira de Adriana Fernandes e Teresa Simões, duas amigas que organizam encontros, no espírito de não consumirem tanto.
Assim nasceu a página do Facebook Troca-te. Lá não se fazem transações, apenas se anunciam os eventos. “As permutas que gostamos de fomentar não são online, mas pessoais, pois assim também se trocam experiências”, justificam.
Na última edição, dedicada aos livros, houve espaço para leituras e recomendações personalizadas de certas obras. Antes do Natal, juntaram algumas dezenas de pessoas para intercâmbio de roupa.
“Parecia uma loja, onde não havia culpa por se gastar dinheiro. Foi libertador”, lembra Adriana, de calças vermelhas bem justas, como novas, que arranjou nessa altura. As amigas gostavam que este conceito se disseminasse pelo País, espalhando o efeito da partilha. Por enquanto, os encontros só acontecem em Lisboa, no espaço cultural Sou, no bairro dos Anjos.
“A moeda facilita as trocas de bens e serviços, uma vez que dispensa a dupla coincidência de vontades”, lembra Rita Martins de Sousa, professora de História Monetária e Financeira. “Sem o seu uso, o mercado fica limitado à realização simultânea dos desejos dos dois contratantes.” Mas isso era no princípio, quando apareceu para agilizar as transações diretas nas feiras. Hoje, o dinheiro é muito mais do que isso e o sistema financeiro atual ameaça causar mais dificuldades do que ajudar nos negócios.
Foi essa a razão que levou Nuno Ladeiras, 37 anos, a trazer para Portugal a Rede Barter, criada com o desígnio de alargar a troca ao tecido empresarial. Os últimos números do comércio recíproco multilateral, de 2008, apontam para uma movimentação de 12 biliões de dólares e 150 mil empresas a operarem. Por cá, ainda não se chegou à centena de sócios. “Troque o que tem pelo que precisa”, eis o lema. Nuno explica: “Se uma empresa produz mais do que consegue escoar, pode reverter esse excedente em créditos e recorrer a outro fornecedor para suprir necessidades sem ter de fazer mais despesas.” Miguel Agrela, 44 anos, administrador da clínica Lifebeat que, recentemente, aderiu à Rede Barter vai aproveitar os serviços de limpeza, economato e segurança disponíveis. De volta, dará programas de avaliação de saúde. A mesma intenção tem o dentista Frederico Pavão, 32 anos: “Com a crise, tenho tempos mortos no consultório, que pretendo reverter em serviços.” Tudo isto é mediado por uma moeda virtual, para se poder gerir os créditos e os débitos de cada um, com base nas faturas. A rede ficará com uma percentagem das permuta, variando entre 1% e 7,5%. Até ao final do ano, a inscrição das empresas é gratuita.
Eis um sistema que parece perfeito, pensou Casimiro Jesus, 68 anos, um gestor reformado que se dedica a desenvolver o EcoTrocas, versão particular da Rede Barter.
Quando estiver bem afinada, a coisa funcionará exatamente da mesma forma cada um dá os seus excedentes e recebe consoante as suas necessidades, sem que isso aconteça de forma direta. Oferecese o que se tem, pede-se aquilo de que se precisa. Com base na moeda virtual Eco, as transações fazem-se também apontando os créditos e os débitos. O EcoTRocas funciona no Community Exchange System (CES), um sistema que integra vários países.
Mas a filosofia do projeto é ser local, dirigido às trocas comunitárias. “Decidi criar o EcoTrocas para satisfazer as pessoas que hoje se estão a deparar com imensas dificuldades. Se não tiverem nada para doar, podem ceder o seu tempo.” Simultaneamente com o sonho de ver esta rede a funcionar, Casimiro está a criar um banco de terras, no Alentejo. Cedeu cinco talhões a jovens agricultores para ali explorarem mirtilos e ervas aromáticas e medicinais, em comunidade. Desse espaço sairão várias ideias para alimentar as trocas, com produtos da terra.
“Na sequência de recessões, as pessoas assumem um estilo de vida mais autêntico, tornam-se criativas na forma de consumir, juntam o ideológico à necessidade e combatem a lógica capitalista “, resume Raquel Ribeiro. A especialista considera, no entanto, estes movimentos de nicho. “São um hype, não uma moda.” Até porque, acredita, a maioria está apenas ressabiada assim que sentir uma abertura na crise, volta ao mesmo padrão de consumo.
Não será o caso de Maria Aurindo, 35 anos. Anda nisto há cinco anos, altura em que pediu a concretização de um desejo no site Freecycle e conseguiu realizá-lo: mobilar a casa que herdara do pai para poder lá viver (reuniu 70% dos móveis, sem gastar dinheiro). Entretanto, já “pagou” essa dívida com o que ela própria ofereceu. “Percebi que vale a pena pôr tudo à disposição, porque há sempre alguém interessado. E, assim, faz-se menos desperdício, reutilizase e poupa-se. De certo modo, foi bom ter havido tanto consumo, pois assim existe muita coisa para trocar”, nota Maria, que emprestou uma casa em Sintra e agora vai passar férias às Canárias, sem pagar estada.
Maria conheceu João Aguiar, 28 anos, através do Freecycle. É ele quem dinamiza o site de Lisboa desde 2007, com mais de 8 mil utilizadores (8 milhões no mundo).
Os interessados enviam um e-mail com indicação do que precisam e os seus pedidos são espalhados pela comunidade.
A permuta é combinada particularmente.
João e Maria lançaram agora um agregador de sites, a que chamaram Vida Grátis.
“São as páginas amarelas do gratuito. Tentamos contribuir para uma vida com menos dinheiro”, explicam. Ambos defendem o consumo colaborativo, um movimento em que se partilham e arranjam outras soluções.
“A troca é uma compra inteligente, que não envolve culpa. Ao fazê-la, as pessoas sentem-se mais responsáveis ambiental e socialmente”, defende Maria. “Além de fomentar a cooperação, pois estas transações implicam sempre um encontro.” É essa a filosofia do Trocal Lisboa, um site pioneiro (existe há uma década), gerido pelo psicólogo José Castro, 30 anos.
Quem está inscrito neste grupo, sabe que, duas vezes por ano, se marcam reuniões onde acontecem permutas. “Nesses encontros, nascem afinidades e há intercâmbio de conhecimentos, ganha-se confiança, o que ajuda às trocas, especialmente de serviços”, explica José.
“Sem dúvida que é um sistema que promove a sociabilidade. Mas como somos um povo introvertido, pouco cooperativo e individualista, não tendemos a organizar-nos em associações locais ou de voluntariado”, admite a socióloga Raquel Ribeiro. José Castro sabe, por isso, que o Trocal funciona melhor quando se desenvolve em grupos pequenos, como uma comunidade de bairro, e em espaço urbano no campo a economia paralela sempre foi muito forte.
António José, 54 anos, é um belo exemplo das permutas em meio rural. Trata-se de uma espécie de “faz-tudo” na Herdade da Comporta, onde vários políticos têm terrenos. “Abro caminhos, limpo árvores, vigio os fogos, faço pequenos arranjos nas vedações e a manutenção das casas. Em vez de dinheiro, recebo as pinhas que apanhar.” Depois, vende-as às fábricas, a cerca de 60 cêntimos o quilo.
Agora, está também a lavrar um pedaço de terra que pertence a um cliente para lá plantar melancias. “Lembrei-me de fazer isto para o terreno não estar para ali sem cultivo, com 50 centímetros de mato”, explica António José. Depois, os frutos serão para ele, para o dono do terreno e para as pessoas a quem oferecer.
Stefan Cramer, um alemão completamente aportuguesado, de 70 anos, também se meteu no cultivo de terrenos para que o enorme espaço no Clube Nacional de Natação (CNN), em Lisboa, não continuasse abandonado. Percebia zero de hortas, mas isso não o impediu de, em outubro, semear aquele recanto que nos evade do burburinho típico do vizinho Largo do Rato. As plantas viçosas que saltam à vista de quem lá entra convidam os voluntários a tratarem delas. Stefan decidiu organizar a horta de forma comunitária, contando com os braços dos vizinhos do CNN. Ele coordena as tarefas, arranjou as ferramentas, as sementes e os adubos.
E elaborou um livro de regras para os 15 hortelões que ali aparecem.
Todos trabalham para o bem comum e levam para casa produtos hortícolas. Miguel Teles, 36 anos, faz o que for preciso: abre terreno, poda, planta e ainda angaria voluntários. Em troca, leva para casa “os produtos que estiverem disponíveis”. O que nesta altura significa alfaces de vários tipos, brócolos, diversas couves e ervas aromáticas. Raul Henriques, 64 anos, partilha o gosto e a ignorância de Miguel pelas coisas da terra. “O futuro passa por plantar nas cidades, por uma questão de sobrevivência”, diz, enquanto mostra um grande saco cheio de couves. “Só com as folhas que estão a mais levo aqui uma sopa do caraças!”
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