O medo que temos de errar é tão grande que, muitas vezes, preferimos que programas, aplicações e algoritmos “inteligentes” escolham por nós. Mas será que errar é assim tão errado? Descubra a resposta no artigo de opinião de Ricardo Tomé, director coordenador da Media Capital Digital. Gostamos muito desta opinião!
Deixem-me enganar, P.F.
“Saí de um pesadelo recentemente. Não falo da covid. Já chega. Falo de um outro medo. O de errar. Ou melhor – falo do medo que o ser humano ganhou de errar e, como tal, passando a idolatrar os apoios à decisão. Nesse pesadelo, acompanhe-me, não erramos, mas também não vivemos, pois passámos a depositar todas as escolhas nos mecanismos que por nós escolhem o que devemos fazer.
O pesadelo rodeava-se de contornos de realismo. Primeiro, no Spotify, recomendavam-me música e eu aceitava as playlists com base nos meus gostos e no que tenho ouvido, sem arriscar em pesquisas e álbuns desconhecidos. A seguir, com a música já a tocar, na pesquisa do vinho fiquei interessado numa garrafa dessas pouco habituais reservadas só aos entendidos da zona do Tejo, mas eis que o Vivino me diz que só corresponde a 63 por cento do meu perfil. Hesitei, pois claro. A seguir, visitando algumas lojas online, recebo feeds com a curadoria de fantásticos e elaborados algoritmos que me “conhecem” e recomendam a roupa que eu poderei gostar e que são (asseguram eles) o ‘meu’ estilo. E nisto, quando questiono toda esta parafernália de sugestões preditivas, eis que uma voz me lembra que já todos usávamos na década passada o botão “I’m Feeling Lucky” do Google, indo directos ao primeiro resultado de pesquisa sem “pensar”, nem ver e nem analisar os restantes nove.
Deixaremos de tomar decisões?
E o prazer do risco? Como é que o algoritmo sabe do que ainda não sabe? Como sabe do que não gosto e vou gostar ou deixar de gostar? E o estranhar, como ferramenta provocadora a tirar-nos do conforto? Bem dizemos aos nossos filhos que “tens de provar pelo menos três vezes até poderes dizer que não gostas”, pois o hábito também treina o palato, bem como treina o cérebro.
Vivemos rodeados de aplicações açucaradas
A culpa, em parte, é nossa, que queremos soluções certeiras e vivemos mal com a desilusão. Vejamos os inúmeros estudos na área da neurociência que tão oportunamente são usados pelos designers de algoritmos de tantas aplicações. Uma má experiência dificilmente é apagada. Várias experiências bem sucedidas são simplesmente uma rotina. E quão difícil é quebrar a rotina… Mas ao lembrarmos Nassim Taleb e o seu icónico “Anti-Frágil”, aprendemos (lembramos) que são as experiências que nos tiram do conforto que nos fazem crescer, que errar nos faz conhecer, que é só quando o músculo rasga com o esforço acima do normal que este se desenvolve.
Sejamos rebeldes. Forcemos a escolha. Qual é o problema de falhar cinco vinhos em 20? Quatro músicas em 50? Duas peças de roupa em 10? Devolve-se a caixa. Passa-se à frente a faixa. Aprende-se a não errar na próxima garrafa. Com o tempo esquecemos o que se tornou regular, mas vamos certamente lembrar das lições dos erros cometidos.
Caso deixemos de exercitar a escolha, dependendo ou aprendendo a delegar a mesma cada vez mais em algoritmos, não podemos esperar que a plasticidade do cérebro se desenvolva da mesma forma. Não se trata de uma idolatria do erro e da dor. Mas do livre arbítrio. Fomentar a escolha é saber lidar com a ansiedade do desconhecido. E, quanto mais se escolhe, melhor se escolhe. Esse é, banalmente, o método de refinamento dos algoritmos.
Só que passaram a ser eles a evoluir velozmente. Eu cá por mim, despeço-me enquanto vou ali pesquisar uma garrafa que tenha menos de 50 por cento de compatibilidade e aprender com os erros… ou, se calhar, descobrir do que vou gostar mais ainda”.
Fonte: Meios & Publicidade